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  • Foto do escritorMiguel Marques Ribeiro

O Triunfo de Orwell

O ano começa com a publicação, em apenas duas semanas, de oito livros de George Orwell: quatro versões de Animal Farm, três de 1984 e uma colectânea de ensaios. São oito novas vacinas que passam a estar disponíveis no mercado, com eficácia comprovada contra as diversas variantes do autoritarismo.



O interesse pela obra do escritor inglês, nascido em 1903 (pseudónimo de Eric Blair), mesmo nunca tendo esmorecido, ganhou novo impulso desde o início da pandemia.


O vírus também é pródigo em enigmas e os seus textos contém uma imensidão de respostas que a informação farta e ininterrupta, que diariamente recebemos sobre os perigos da pandemia, não é capaz de esclarecer - continua a faltar- -lhe algo que só a literatura pode dar: uma explicação mais profunda e humanizada do que estamos a viver.


Animal Farm (que é traduzido por Triunfo dos Porcos ou pelo mais literal, mas menos sugestivo, Quinta dos Animais) tem todas as características da metáfora social desenhada com mestria: concisão, analogia, desenlace, efeito de espelho que denuncia todos os totalitarismos. É um paradigma da fábula aplicada aos tempos modernos.


Dado à estampa em 1945, o livro representa uma mudança assinalável no percurso de Orwell, que o catapultou em definitivo para o reconhecimento como romancista, depois de ter alcançado um êxito assinalável como jornalista e ensaísta.


Em Animal Farm, o escritor rompe com o processo criativo que desenvolvera nos anos anteriores à Segunda Grande Guerra, quando se empenhava em escrever crónicas sociais ao estilo de Jack London, hospedando-se em pensões baratas de Londres e Paris e vivendo nas ruas como um vagabundo, para ter material para escrever Down and Out in Paris and London.


Animal Farm representa uma nova fase em que se consolida como ficcionista preocupado em criar histórias que reflictam sobre a realidade a partir de pontos de vista não convencionais e não em descrever vivências mais ou menos vedadas ao olhar do comum dos mortais, mediante mecanismos realistas e pungentes.


Contudo, a ruptura só será definitiva com 1984. Sobre Animal Farm ainda paira o rasto da experiência pessoal de Orwell. Na Catalunha, onde combateu ao lado dos republicanos durante a Guerra Civil Espanhola (experiência de que vem a resultar Homenagem à Catalunha), o escritor viveu em primeira mão as tácticas de controlo e manipulação do estalinismo, quando os combatentes leais à URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) lançaram uma purga contra as facções mais radicais do exército republicano, nas famosas Jornadas de Mayo, em Barcelona.


George Orwell, pseudónimo de Eric Blair. Foto: DR.

O próprio Orwell foi considerado personna non grata e julgado à revelia, juntamente com a esposa, quando já tinha regressado a Inglaterra, com um ferimento grave na garganta que quase lhe inutilizou a voz.


Este processo marcou-o profundamente. Sem abdicar dos ideais progressistas que o aproximaram do Independent Labour Party (esquerda socialista inglesa), tornou-se um anti-estalinista declarado, o que lhe valeu até alguns dissabores.


Quando quis publicar Animal Farm, Victor Gollancz, velho amigo de infância e editor de algumas das suas obras, como The Road to Wigan Pier, recusou a publicação. A crítica ao estalinismo preconizada no texto colide com as posições políticas do meio em que Gollancz se movimenta, para além de que, na fase imediatamente posterior à guerra, há uma certa condescendência da opinião pública inglesa face ao estalinismo, pois os soviéticos tinham acabado de ajudar a vencer Hitler. Só depois de algumas tentativas consegue que o manuscrito seja aceite e publicado.


Nos anos seguintes, dotado da chave deste novo paradigma literário que Animal Farm lhe permitiu abrir, Orwell produz nova obra-prima: 1984, texto que seria publicado em 1949. O carácter perturbador e distópico valeu-lhe o êxito imediato junto de críticos e leitores, reconhecimento que perdura até aos dias de hoje e de que, malogradamente, mal pôde desfrutar, pois meses depois morre turbeculoso.


Talvez precisemos hoje mais do que nunca de 1984. Vivemos numa sociedade da pós-verdade, ou da ‘hipernormalização’, para usar a expressão de Adam Curtis. Sabemos que a mentira molda a existência, mas não conseguimos conceber alternativas válidas.


Resta-nos então ler, porque ler é sempre uma resposta, mesmo que parcial, sobretudo se for alguém como Orwell, que nos ajude a pensar o quão próximos ou distantes estamos de sociedades de tipo totalitário. Seja numa das versões do Animal Farm e 1984 agora publicadas, ou nos Ensaios, género em que se destacou como um dos melhores de sempre em língua inglesa, e que versam sobre temas como literatura, cultura, imperialismo e questões identitárias.

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